A pesquisa que estamos desenvolvendo tem como foco as políticas públicas de internet e banda larga que estão sendo pensadas para o Brasil e traça também um panorama comparativo com outros países. Nesse sentido, gostaria de começar a conversa em um contexto mais geral: o que significa uma parcela da população ter acesso à internet e outra não? Em outras palavras, que efeitos são gerados pelo acesso diferenciado a esse meio, tanto em relação à qualidade e velocidade de acesso (aspecto técnico), quanto em relação a diferenças mais gerais (econômicas, culturais, educacionais, de gênero etc.)?



Dafne Sabanes Plou: Na maioria dos países latino-americanos, os governos estão fazendo grandes esforços para garantir que a população participe da sociedade da informação e do conhecimento na qual o acesso e o uso com sentido das tecnologias da informação e comunicação desempenham papel fundamental. Acredito que os governos entendem com clareza que sem uma participação positiva e massiva da população nesses novos desenvolvimentos, os países podem ficar excluídos das novas formas de produção, dos avanços científicos e tecnológicos, dos intercâmbios comerciais e da atividade bancária massiva e on-line, do acesso aos serviços públicos, como de saúde, e de uma participação efetiva nas discussões globais sobre economia, política, desenvolvimento sustentável, paz mundial etc. A esta altura, pode-se dizer que não haverá um progresso significativo das pessoas nem dos países sem acesso à informação e participação na comunicação, na criação de conteúdos e desenvolvimento tecnológico no ciberespaço. O fato de que em nossos países o acesso à conectividade de banda larga esteja limitado a um percentual pequeno da população e seja tão custoso, segundo um informe recente da CEPAL, [2] impede um maior desenvolvimento da comunicação eletrônica no interior dos países e com o mundo exterior, adiando a inserção da região e da sua população na sociedade da informação e do conhecimento da qual falamos no começo.



Considerando esse contexto de crescente importância da internet em diversos setores da vida social, que políticas públicas são necessárias para diminuir a desigualdade de acesso a este meio?



DSP: As políticas públicas devem levar em conta níveis e situações distintas. Por um lado, é fundamental o acesso a uma conectividade veloz e de qualidade, com conexões de banda larga que permitam um fluxo adequado e potente das comunicações. Também devem ser universalizadas as possibilidades de acesso a toda a população, com programas que incluam as crianças desde a escola, com capacitação adequada para os docentes. Na Argentina, por exemplo, estão funcionando dois programas igualmente importantes, “Argentina Conectada” [3] e “Conectar Igualdade” [4]. Com o primeiro, espera-se conectar com uma rede de fibra ótica todo o país para alcançar comunicações eletrônicas rápidas e seguras, apontando para a inclusão digital de toda a população. O segundo programa insere a capacitação no uso dos computadores na educação pública, com a entrega gratuita de netbooks aos docentes e estudantes secundários. Isso implica também um trabalho de desenvolvimento de conteúdos digitais para a educação, abrindo uma ampla gama de possibilidades para que educadore(a)s, desenvolvedore(a)s e técnico(a)s apliquem seus conhecimentos para nutrir e enriquecer os conteúdos educativos. Em pouco mais de dois anos foram entregues 1.800.000 netbooks em diferentes escolas em todo o país, o que significa que esses adolescentes contam com ferramentas e conhecimentos para uma melhor inserção no mercado de trabalho, na formação superior ou universitária, e para a inserção em um ritmo de vida que exige acesso e manejo da informação e participação em redes de comunicação fluidas e constantes.



Atingir a inclusão digital exige compromisso político por parte dos governos em todos os níveis e também investimento em infraestrutura e equipamentos tecnológicos, além do financiamento da capacitação de milhões de docentes e alunos. Ou seja, trata-se de decisões políticas de peso para as quais são necessários acordos entre os diferentes partidos políticos e também com os setores empresariais e de serviços. Mas não há dúvida de que se as decisões são acertadas, o salto qualitativo para o desenvolvimento do país é de envergadura.



Poderia citar exemplos de políticas bem-sucedidas nos países da América Latina ou em outros países?



DSP: Citaria novamente os programas “Argentina Conectada” e “Conectar Igualdade”, que já funcionam em um bom ritmo no meu país.



Vocês têm acompanhado o Programa nacional de banda larga que está sendo elaborado hoje no Brasil? Como as políticas de internet brasileiras são vistas a partir do ponto de vista internacional?



DSP: O Brasil é um país com o qual a Argentina sempre se compara, de modo que seus progressos e acertos em matéria de desenvolvimento sempre são comentados na mídia local. O anúncio feito há poucos dias pela presidenta Dilma Roussef de que já há 72 milhões de conexões de banda larga no país é impactante, porque significa levar conexão de qualidade e boa velocidade a um percentual significativo da população. Nesse sentido, o Brasil apresenta uma imagem de progresso e modernidade de acordo com os êxitos econômicos dos últimos anos. Não obstante, continua havendo uma dívida, tanto no Brasil como na Argentina e na maioria dos países latino-americanos, em relação aos custos para os usuários finais dos serviços. Os custos de conexão à Internet em nossos países estão entre os mais altos do mundo, muito mais que nos países desenvolvidos. Embora nos 34 países que integram a OCDE [5.1] [5.2] a conexão à Internet custe 5.9 dólares por megabyte por segundo, no Brasil o preço é de 17.89 dólares e na Argentina é de 15.59 dólares, o que impede a democratização do acesso e a participação no mundo digital com mais conteúdos e produções latino-americanas. A maior parte da nossa população não pode pagar esses preços para conectar-se à Internet.



O conceito de banda larga pode variar muito. para você, o que seria a banda larga? Acha que as políticas devem ser pensadas nesses termos ou a partir de outras definições? Quais?



DSP: É interessante levar em conta a própria definição que a CEPAL traz em seu informe. A banda larga não é o mero acesso rápido à Internet; vê-la somente desta forma seria menosprezar sua importância. A banda larga é uma plataforma primordial, um elemento central em um sistema mais amplo, que possibilita uma dinâmica que impulsiona o desenvolvimento econômico e social. As políticas públicas devem contemplar essa visão, e por isso é importante incluir também o desenvolvimento da conectividade à banda larga móvel. Sabemos que há regiões em nossos países que não seriam nunca alcançadas por conexões fixas, nem de telefonia nem de Internet. As conexões móveis que tanto aproveitamos nas grandes cidades do continente, às vezes simplesmente para frivolidades, devem ser implementadas onde mais se precisa, os lugares afastados e marginalizados de nossos países, a fim de impulsionar sua integração e erradicar a injustiça do isolamento comunicacional e das oportunidades de desenvolvimento que possibilitam o acesso e o uso qualificado das tecnologias.



Vocês têm discutido os modelos tecnológicos que devem ser adotados para garantir a maior disseminação da internet? Quais seriam os melhores modelos a serem adotados nos países da América Latina?



DSP: Acredito que modelos como “Argentina Conectada”, “Conectar Igualdade” e o Plano Ceibal desenvolvido no Uruguai, que eu conheço melhor, são modelos a seguir porque criam infraestrutura e democratizam as possibilidades de participação em novos processos comunicacionais, no desenvolvimento de conteú­dos e tecnologia, no acesso aos serviços de saúde e às facilidades do governo eletrônico. Também é importante o desenvolvimento de telecentros ou centros de conectividade tecnológica como serviços públicos, onde sejam oferecidos serviços de Internet a preços ao alcance de toda a população, incluindo capacitação que leve em conta a integração de pessoas de todas as idades, incluindo também os adultos e as pessoas com deficiência.



Além de questões de infraestrutura, o que uma política pública de internet deveria considerar?



DSP: Antes de tudo, apontar um prazo adequado para a inclusão digital de toda a população, sem distinção de idade, gênero, raça ou condição social. Há exemplos interessantes de pessoas que saíram de seu isolamento graças à comunicação por celular ou Internet, como também pessoas com deficiência que avançaram em seus estudos e conseguiram o primeiro trabalho remunerado através da comunicação eletrônica. É um desafio grande, mas a visão da política pública deve ser ampla e integradora. 0



A regulação da internet pode abranger diversos aspectos: provimento, organização da camada lógica e mesmo conteúdo. Alguns analistas acreditam que a internet, diferentemente dos meios de comunicação de massa, deveria ser tratada como território livre, sem grandes regulamentações, principalmente na área de conteúdo. Como você vê essa questão? qQue aspectos devem ser regulados e por quê?



DSP: Acredito que o funcionamento da Internet deve ser livre, sem regulações e sem censura. Penso que se deve haver algum tipo de controle, que deve ser exercido pelo próprio público e não por alguma entidade que se arrogue esse tipo de autoridade. Creio que os conteúdos que circulam pela Internet devem ter um caráter aberto. Temos visto que as regulações que querem impor à Internet sempre têm como objetivo controlar a população, suas ideias, sua capacidade de discernimento, suas possibilidades de organização e participação democrática nos processos políticos, sociais e culturais. As pessoas já se sentem cidadãs do mundo e não querem ver esgotadas suas possibilidades de participação por leis que, com a desculpa de regular e proteger, impõem restrições à liberdade de expressão e de comunicação.



Gostaria de falar também sobre questões de gênero relacionadas às TICs. Que dificuldades e que oportunidades as TICs podem trazer para as mulheres?



DSP: O Programa de Apoio às Redes de Mulheres da APC foi criado em 1992, e desde então o movimento de mulheres tem conseguido incluir as tecnologias da informação e comunicação como parte das ferramentas utilizadas diariamente para seguir trabalhando para o avanço dos direitos das mulheres. Me lembro que nossas primeiras capacitações começavam com ensinar a dominar o mouse e com a criação de uma conta de correio eletrônico. Logo começamos a trabalhar com os usos estratégicos das tecnologias da informação e comunicação para o ativismo das organizações de mulheres e agora nossas capacitações se referem aos usos multimídia da tecnologia e com as medidas de segurança que devem ser observadas por todas as organizações que trabalham com temas sensíveis, como denúncias de femicídio e violência de gênero, apoio às sobreviventes da violência e suas famílias, direitos sexuais e reprodutivos, incluindo aborto etc. Essas organizações costumam sofrer perseguição em países autoritários, onde ocorrem diariamente o “hackeamento” de contas ou sítios de Internet e agressões anônimas às militantes via Internet e celular. Devemos trabalhar pela proteção integral das companheiras, porque uma ameaça virtual facilmente pode se converter em uma ação violenta real.



No entanto, vemos que há ainda um contingente de mulheres que devem ser incluídas no uso das tecnologias, como as mulheres rurais ou as adultas, razão pela qual é importante que sejam consideradas pelos programas de inclusão digital. Nesse sentido, a tarefa dos telecentros ou centros locais de conectividade pode ser importante para integrar essas mulheres ao mundo digital. Mas nossa preocupação agora está centrada na discussão sobre a violência de gênero que lamentavelmente cresce todos os dias, e no uso de tecnologias da informação e comunicação para a inserção das mulheres no mundo do trabalho. No tema de violência de gênero, durante quase três anos, de 2009 a 2011, trabalhamos em um projeto que nos ajudou a perceber que tanto a comunicação pela Internet quanto por celular podem ser veículos de maus tratos psicológicos, sendo necessárias medidas para eliminar esse tipo de violência.



Em relação ao trabalho, os percentuais de mulheres na indústria e nos serviços de tecnologia da informação e da comunicação permanecem baixos, sendo ainda espaços com muita discriminação, tanto em relação aos salários quanto ao acesso a cargos de maior responsabilidade. Grande parte dessas distorções só pode ser explicada por preconceitos relacionados a questões de gênero. Por que uma engenheira recebe um salário menor que um engenheiro, se ambos realizam as mesmas tarefas na empresa? O setor privado nos deve uma explicação, porque a discriminação de gênero segue presente quando é um direito das mulheres a remuneração e oportunidades de desenvolvimento profissional similares às de seus colegas homens.



A APC tem a missão de empoderar e dar suporte a indivíduos, organizações e movimentos no uso das TICs para contribuir com o desenvolvimento humano equânime, a justiça social, a participação política e a sustentabilidade ambiental.



DSP: Se olharmos para os projetos desenvolvidos pela APC em seus mais de 20 anos de existência, veremos que todos foram realizados considerando o direito à comunicação como um dos direitos do cidadão para alcançar uma vida digna, com justiça e respeito aos direitos humanos. Por que instalamos uma rede de telecentros em áreas rurais afastadas no Peru, ou capacitamos jovens às margens do lago Victoria, em Uganda, ou trabalhamos questões de gênero e acesso às tecnologias em um povoado de pescadores nas Filipinas, ou investimos esforços para obter maior conectividade e conexões sem fio no Zimbabwe? Porque acreditamos que as tecnologias da informação e da comunicação são uma ferramenta essencial para avançar no exercício dos direitos, e reconhecimento, visibilidade de problemas e busca por soluções e respostas para alcançar um desenvolvimento integral, com respeito pelos direitos das pessoas. Sabemos que o acesso à informação, o exercício da liberdade de expressão e de associação e o direito à comunicação são elementos chaves para o exercício de outros direitos humanos. Diante das ações de alguns governos para controlar ou fechar esses canais de comunicação, é cada vez mais necessário manter uma militância ativa e alerta para o avanço no exercício desses direitos, sem cerceamentos.



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Olívia Bandeira

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