Marina Maria, integrante da equipe brasileira da pesquisa EROTICS, foi uma das panelistas no evento "Os derechos na internet são direitos humanos", co-organizado pela APC junto ao Ministerio sueco de Assuntos Exteriores na 17ª reunião do Conselho de Direitos Humanos em Ginebra no dia 3 de junho. Debido a limitações de tempo, não foi possível para ela apresentar no evento seu documento na íntegra. GenderIT.org publica a sua apresentação completa que oferece perspetivas interessantes em relação aos debates políticos recentes da regulação da internet no Brasil e cómo os direitos humanos foram trazidos de volta ao debate graças a intervenção de ativistas locais.


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Notas de Marina Maria, assistente de comunicação e projetos do Observatório de Sexualidade e Política e integrante da equipe brasileira da pesquisa EROTICS, para apresentação no painel da APC no Conselho de Direitos Humanos da ONU (3/6/2011)


Boa tarde. É um prazer estar aqui hoje. Eu gostaria de agradecer à equipe da APC pela oportunidade de compartilhar algumas ideias neste painel com o relator especial da ONU pela promoção e proteção do direito à liberdade de expressão e opinião, Frank La Rue, e com os/as outros/as painelistas. Desde 2007, trabalho como assistente de comunicação e projetos no secretariado brasileiro do Observatório de Sexualidade e Política, um fórum global criado em 2002, composto por pesquisadores/as e ativistas de diferentes regiões do mundo que monitoram os direitos sexuais e reprodutivos, inclusive em arenas políticas estratégicas, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Estou aqui para apresentar parte da experiência e achados da etapa brasileira do projeto EroTICs – pesquisa exploratória sobre sexualidade e internet, coordenado pelo Programa de Apoio a Redes de Mulheres da APC.


A pesquisa EROTICS foi realizada entre 2008 e 2010 em cinco países – Brasil, Índia, Líbano, África do Sul e Estados Unidos – e visou explorar como a adoção pelo estado de medidas de regulação ou mesmo de controle de conteúdo online tem impedido e facilitado o acesso e o uso da internet por ativistas em defesa dos direitos das mulheres, igualdade de gênero e direitos sexuais. O estudo de caso de cada país examinou questões mais relevantes em níveis nacionais, relacionadas com os objetivos dessa pesquisa. Metodologias e enfoques também variaram de acordo com cada contexto.


Três grandes descobertas


Os achados da pesquisa global mostram que, primeiramente, a internet é uma ferramenta essencial para as mulheres, particularmente para mulheres jovens, mas também para grupos marginalizados, como pessoas transexuais que procuram informação sobre direitos e saúde. Além disso, a pesquisa também apontou que a internet foi estratégica para grupos como lésbicas e ativistas queer que se organizam e se mobilizam para o avanço de seus direitos. No mais, os achados indicam que, em todo lugar, medidas adotadas para regular a internet podem negativamente afetar estas possibilidades e o direito de liberdade de expressão, acesso à informação e privacidade.


Direitos humanos, Orkut e os usos da internet no Brasil


No Brasil, a pesquisa EROTICS foi realizada por uma equipe de pesquisadores/as do Observatório de Sexualidade e Política e do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos. Desenvolvido entre maio de 2009 e junho de 2010, o estudo combinou dois componentes: um mapeamento dos debates políticos recentes sobre regulação da internet no Brasil; e um estudo etnográfico de práticas na internet. Compartilharei basicamente uma síntese dos achados em relação aos debates de regulação na internet, que foram muito intensos no período em que esta pesquisa aconteceu.


Antes de apresentar os achados da pesquisa, é importante resgatar que o Brasil vivenciou uma ditadura entre 1964 e 1985. Nosso processo de democratização tem como um de seus legados chave uma constituição fortemente baseada em premissas sólidas de direitos humanos, inclusive em relação à igualdade de gênero, não discriminação e liberdade de expressão e direito à privacidade. Outro importante legado é a consolidação gradual de mecanismos de participação na formação política nas mais diversas áreas.

Em relação à internet, em 2009, 67,5 milhões de brasileiros/as tinham acesso à internet. Nos últimos anos, o uso da internet tem crescido, principalmente entre mulheres, adolescentes e crianças. Entre os/as brasileiros/as, a participação em plataformas de redes sociais como o Orkut é significante e o uso do Facebook tem se tornado muito expressivo também. Em 2008, mais de 50% dos/as integrantes do Orkut no mundo eram brasileiros/as (em torno de 23 milhões de pessoas), de acordo com os dados demográficos disponíveis no site do Orkut, de forma que o Brasil apresenta uma forte tendência à conectividade.


Criminalização dos usos da internet


No Brasil, desde meados de 1990, medidas relacionadas à regulação da internet têm sido discutidas, o que incluiu a criação em 1995 do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o órgão responsável por governança da internet, em particular pelo fornecimento do domínio “.br”.


No entanto, a partir de 1999, uma série de projetos de leis objetivando a aplicação de lei criminal para regular a internet tem sido debatida no Congresso. Essas iniciativas foram evidentemente influenciadas pelos debates globais como o Ato norte-americano DMCA, de 1998, e a Convenção Européia sobre Cibercrime, de 2001.


Como em outros lugares, estas propostas legislativas foram desencadeadas por preocupações com fraudes financeiras e questões de propriedade intelectual, mas também por crimes evidentes na web, como o abuso sexual de criança. O processo destas leis lentamente evoluiu até 2008, quando um conteúdo combinado foi parcialmente aprovado pelo Senado e que se tornou conhecido como “Lei Azeredo”, em função do nome do senador – Eduardo Azeredo – responsável pela apresentação desta lei.


Este projeto de lei adotou medidas criminais rigorosas de controle da internet, incluindo o registro compulsório de usuários/as e a retenção de logs de acesso. Diante destas propostas, a comunidade brasileira de pesquisadores/as e ativistas cibernéticos acompanhou de perto os debates no Congresso, criticando as propostas que estavam sendo debatidas, bem como os resultados finais.


Levando o marco dos direitos humanos de volta aos debates da regulação da internet


Quando a lei foi parcialmente aprovada, uma mobilização contínua em oposição começou. Em abril de 2009, o Comitê Gestor da Internet lançou o Decálogo de Princípios para Governança e Uso da Internet no Brasil, recomendando que a regulação da internet deveria ser guiada pela liberdade de expressão, respeito à privacidade e direitos humanos.


Com relação às atividades ilegais, o Decálogo salienta que a responsabilidade deveria ser atribuída exclusivamente àqueles que consciente e voluntariamente realizaram a quebra de conduta, e não contra os/as indiretamente envolvidos/as. Antes e depois, uma série de debates públicos e mobilizações sociais aconteceram em forma de petições online, reivindicando um veto presidencial sobre lei e uma série de eventos públicos que foram chamados de “Contra o AI-5 Digital”.


Este nome decorreu das lutas durante a ditadura contra a censura, então impostas pelo Ato Institucional número 5 (AI-5), que suspendeu totalmente a liberdade de expressão. Em junho de 2009, durante um evento importante sobre software livre, o então presidente Lula respondeu aos apelos de ativistas, dizendo que uma solução seria encontrada para evitar os efeitos de censura na internet na lei. O gabinete do presidente solicitou uma alternativa jurídica à “Lei Azeredo”, delegando ao Ministério da Justiça a tarefa de conduzir este processo.


Fazendo uma nova lei civil


Em resposta a tal pedido, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, recomendou que uma nova proposta de lei civil fosse apresentada, indicando que o seu conteúdo deveria ser sujeito a uma consulta online pública. A proposta foi tornada pública em outubro de 2009 e a consulta pública online foi aberta, sendo dividida em duas fases.


O texto que foi apresentado na primeira rodada de debates foi baseado em princípios fundamentais da Constituição brasileira e do Decálogo apresentado pelo CGI.br. Cerca de 900 comentários foram postados por indivíduos e organizações na primeira fase. Em seguida, uma proposta de projeto de lei foi elaborada pela equipe do Ministério da Justiça equipe e disponibilizada para críticas até maio de 2010. Na segunda etapa, cerca de 1.200 pessoas participaram da consulta.


Enquanto isso, o Marco Civil da Internet era elaborado e, assim, o processo final do projeto de lei Azeredo ficava parado no Congresso. Embora a consulta online pública tenha terminado em maio de 2010, o esboço de conteúdo para lei resultante deste processo ainda não foi tornado público ou aprovado. A expectativa, no entanto, é que será apresentado no Congresso durante este ano de 2011. A proposta desta nova lei civil contrasta com a lógica criminal presente no texto da lei Azeredo em muitos outros aspectos, como pode ser ilustrado pelo artigo 2 a seguir, do primeiro capítulo:


“A disciplina do uso da Internet no Brasil tem como fundamentos o reconhecimento da escala mundial da rede, o exercício da cidadania em meios digitais, os direitos humanos, a pluralidade, a diversidade, a abertura, a livre iniciativa, a livre concorrência e a colaboração, e observará os seguintes princípios: I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento; II – proteção da privacidade; III – proteção aos dados pessoais, na forma da lei; IV – preservação e garantia da neutralidade da rede; V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; e VI – preservação da natureza participativa da rede”.


O valor das consultas abertas e a aproximação multisetorial


A trajetória brevemente descrita aqui está relacionada, de diversas formas, com o assunto deste painel. Ela ilustra o quanto debates sobre regulação da internet estão profundamente conectados com as políticas democráticas. As questões envolvidas são complexas e polêmicas e atraíram um amplo, heterogêneo e contraditório espectro de atores. Mas a experiência brasileira indica que, sob condições específicas, advocacy e mobilização podem ter um impacto positivo sobre os debates legais acerca da internet.

No caso brasileiro, isto significou uma mudança radical e positiva de uma abordagem de segurança pública e lei criminal para um marco legislativo civil baseado nos direitos humanos. Além disso, esta foi a primeira vez que parte de uma legislação foi elaborada nas bases de uma consulta aberta e pública na internet, sendo uma notável experiência de deliberação democrática, alinhada com as tendências globais atuais de práticas de e-governance.


Por último, a consulta online pública criou condições favoráveis para uma deliberação democrática, o que permitiu igual acesso de participação para todos os atores interessados. Na última fase da consulta, entre os/as participantes estavam milhares de ativistas atuando em diferentes áreas – ativistas cibernéticos, pessoas engajadas na luta pelo direito à comunicação e à proteção de crianças, pesquisadores e cidadãos/as diversos/as –, e também um número expressivo de representantes da indústria fonográfica, principais agências de aplicação da lei e também de Ministérios, como o da Fazenda e de Relações Exteriores. Vale ressaltar que as mesmas regras de participação foram aplicadas a todos/as participantes.


Principais barreras da participação ativa, linguagem técnica e falta de conciência


Apesar da positiva trajetória, limitações podem ser identificadas neste processo de debate no Brasil. Por exemplo, o número de pessoas que se engajou na consulta pública foi bem menor do que o número que assinou as petições e participou dos eventos públicos de protesto contra a Lei Azeredo. No mais, a maior parte da sociedade civil participante correspondia a grupos previamente envolvidos com debates de regulação da internet.


Apesar deste aspecto refletir a fragmentação contemporânea dos debates políticos, um problema adicional identificado no processo brasileiro foi que aspectos técnicos complexos presentes nas discussões aparentemente dificultaram que outros grupos se engajassem mais efetivamente. Por exemplo, ficou claro que nem grupos de mulheres atuantes na defesa da equidade de gênero, nem ativistas pelos direitos sexuais se envolveram de perto nestas discussões.


Na tentativa de explorar mais um pouco por que comunidades feministas e LGBT não estiveram envolvidas nestas intensas discussões sobre regulação da internet no contexto brasileiro, o estudo realizou uma pequena pesquisa entre setores destes grupos (com 62 entrevistados/as). Os resultados do questionário aplicado mostram que, apesar destas comunidades intensamente usarem a internet para acessarem informações e aprenderem mais sobre seus direitos, a grande maioria demonstrou um desconhecimento sobre este processo político sobre internet no Brasil entre 2009 e 2010.


Isto, em nosso ponto de vista, é um grande sintoma de um déficit democrático. Se as coisas fossem diferentes, as comunidades pela equidade de gênero e direitos sexuais certamente se beneficiariam destas conversas sobre regulação da internet, particularmente no que diz respeito ao significado problemático da regulação criminal das práticas sociais, mas também em relação à relevância chave do direito à privacidade nas sociedades contemporâneas.


Deve-se observar que estas comunidades, assim como tantos outros setores da sociedade brasileira, ainda não estão plenamente conscientes e dispostos a reivindicar seus direitos à privacidade e confidencialidade. Por outro lado, a democracia brasileira e o debate sobre regulação da internet seriam grandemente beneficiados se houvesse um mais permanente e transversal diálogo entre políticos/as, ciberativistas, ativistas pelo direito à comunicação, comunidades em defesa da equidade de gênero e dos direitos sexuais e defensores/as da proteção de crianças e adolescentes.


Criando espaços para diálogos intersetoriais e multiatorais


Considerando o caso brasileiro, também gostaria de destacar a importância da ONU para a criação de mais espaços locais, nacionais e regionais de debate sobre regulação da internet e construção de mecanismos para o aumento igualmente do diálogo e da participação de atores de diferentes campos, como igualdade de gênero, direitos sexuais e direito à internet, não apenas aqueles que já estão engajados no debate sobre governança da internet.


No futuro, a criação desses espaços e processos para possibilitar estas conversas podem contribuir para a construção e legitimação de perspectivas mais equilibradas de abordagens sobre os direitos à liberdade de expressão, privacidade e proteção contra a violência. Obrigada.

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